domingo, 26 de dezembro de 2010

Vassalo

Meu bem você não sabe dos meus males nem a metade/ Ah quem me dera se soubesses que o espinho que me causa ferida e torna minha vida mal resolvida/ É essa mania de fazer pisar no meu coração com tamanha intensidade.

É esse desamor que criaste por mim e que me causa tamanha dor/ Seguidos de migalhas de atenção que realimentam a minha pretensão/ De tê-la novamente minha flor para destilar-lhe todo o meu amor. Mas peço te, senhorita, que não maltrates quem jazia em teus sonhos frequentes visitas/ Pois esse quem hoje sofre os martírios de toda essa desilusão/ Não deseja nunca que senhor algum lhe faça como o fez vigorar tanta aflição.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Como quando for

Às vezes quando me sento ou quando a mente fica vazia e começa a construir um milhão de pensamentos, me pego imaginando quando eu for velho. Isso mesmo, idoso. Quando meus cabelos se tornarem brancos e em poucas quantidades ou não. Quando me olhar no espelho e ver as marcas do tempo escavadas nos traços do meu rosto, isso quando eu as vir, ou sob a ajuda de alguma lente convexa ou côncava, seja lá o que for. Quando meus braços e pernas fazerem-se pesar uma tonelada e todos os movimentos serem acompanhados de rangidos e cautela. E minha pele castigada proteger meus frágeis músculos e ossos de algum possível impacto. Uma pele macia em alguns pontos, esticada e enrugada, e preferencialmente cascuda e roliça nas extremidades. Quando a luz não for tão clara e à meia-luz se tornar breu. Quando tiver como hobby relembrar com os resquícios dos amigos as histórias de outrora. Quando sonhar com a chance de ter uma máquina do tempo para poder ser de novo menino, mas com a experiência do velho. Quando usar uma camisa social entreaberta debaixo do sol escaldante do verão e sentir o calor escorrer em forma de suor, qual fosse uma bica o pescoço flácido e quando o calor for mais quente e sofrido quanto como nunca o fora até então. Quando todo o amor pela minha amada possa se transmitir através de um selinho carregado de cumplicidade, amor e amizade e não mais que isso, por um abraço que recheia ambos os braços e a alma de um vazio pleno, e eu acho que o nome disso será paz. Quando marejarem os meus olhos na formatura dos meus filhos. Quando meus filhos e minhas noras deixarem meus netos para cuidarmos eu e minha velha, enquanto eles praticam a vida social ou amorosa. Quando tiver dentro dos meus braços os frutos dos meus filhos afagados sob um cafuné e um beijo no rosto ou nos cabelos e essa é a parte mais linda. Quando fazer deles meus filhos de novo e mimá-los mais que os primeiros, com brincadeiras, com histórias, com terra, água, mato e natureza, bolo de fubá e chocolate, pião e iôiô, bola e pipa no céu e me fazer criança pela terceira vez. Quando encontrar neles alegria mais uma vez para viver tudo de novo. E de limpar os arranhões e machucados e as lágrimas de qualquer ferimento ou desconsolo. Mas também dos puxões de orelha e de chamar-lhes a atenção, de pegar no pé quanto aos estudos e as prevenções. Quando eu ver a preocupação exagerada dos mais novos por problemas tão fáceis de serem resolvidos, ou que não necessitem nem de preocupação alguma. Quando tiver certeza de que toda viagem será feita no conforto de um banco em qualquer transporte público e ter que ouvir os cochichos maldosos da nova geração reclamando o meu direito. É, me pego imaginando quando eu for velho, quando eu passar as tardes sentado na calçada curtindo a brisa e o movimento, vendo passar os homens e mulheres e a criançada, jogando conversa fora com os vizinhos na boca do portão. Quando eu sorrir frente à doença vendo o desespero e os cuidados do meu amor para comigo e as visitas ao médico se tornarem parte da minha rotina. Quando servir café para as visitas sentados no sofá de casa ao lado da minha mulher. Quando eu olhar para trás e ver o fogo da paixão consolidado em amor de pura qualidade refletidos no olhar terno daquela com quem eu jurei amor pralém da morte. Quando tiver a sensação de uma vida mais cheia de certeza e ver tudo fazer mais sentido. Quando tiver a percepção de que nada foi em vão e que na verdade essa coisa de viver foi algo muito bom. Às vezes quando me sento ou quando a mente fica vazia e começa a construir um milhão de pensamentos, me pego imaginando como vai ser quando eu for feliz.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Condução

Moreno, como usual, levantou-se cedo na manhã de segunda para seguir ao trabalho. Tomou do copo e engoliu o gole do café para amaciar o pedaço seco do pão que mastigava. Com a mesma facilidade com que envolveu o copo, tomou Magnólia nos braços, que ainda tinha o corpo mole do sono, e deu-lhe um beijo na boca, na beira da pia. Pegou as chaves e a carteira, abriu a porta, esboçou um sorriso de despedida e se foi. Caminhou lentamente o caminho entre a sua casa e a estação ferroviária, aproveitando para notar a paisagem por ter acordado alguns minutos mais cedo. Quanto mais próximo ficava da estação, mais aumentava o movimento de pessoas nas ruas, andando em procissão, em velocidades diferentes, todas na mesma direção. O cheiro de fubá e de milho das barraquinhas de vendedores que ganhavam a vida no comércio, misturados ao forte odor de piche que pulsavam das chaminés fabris tornavam o ar enjoativo. Moreno subiu as escadas da estação envolto por pessoas de todos os lados, o coro parecia um só corpo ganhando espaço, pé por pé, avançando escada acima. Antes que passasse pela roleta, o trem vinha chegando, e algumas pessoas se soltaram do grupo para se apressar para pegar o trem no horário. Moreno apenas deixou-se levar pela multidão que ditava os seus passos. O trem já vinha cheio e a estação cuspia gente para todos os lados. Mas quem trabalha tem horário e o povo é maestro em fazer caber gente onde já não é mais possível. A massa se comprimia no pequeno espaço do vagão e não respeitava gênero nem idade ou coisa do tipo. Na manhã de verão, antes das 7 horas, o ambiente já era fétido e os corpos suavam o mesmo suor que viria minutos mais tarde em horário de expediente. Moreno observava tudo atônito, como o sempre fazia. Apesar da rusticidade corporal, era muito sensível e sentia o palpitar de tudo o que estava a sua volta quando o queria. No espaço fechado notava os rostos dos trabalhadores transeuntes; no rosto negro de um mecânico ele identificou um talho, provavelmente fruto de alguma luta. Os homens das estações tinham fama de brigões, mas também de serem muito batalhadores. Bom, também haviam os pilantras, e desses o trem estava cheio, Moreno sabia identificá-los, mas eles sabiam respeitá-lo. Aliás, apesar da falta de ética ou de oportunidades, havia algo como um código moral dentro dos vagões daquelas linhas, ladrão não roubava trabalhador que molhava o rosto antes do sol amanhecer para chegar no serviço. De vez em quando aparecia algum estudante metido a intelectual ou alguma madame perdida pela cidade que servia de ganha pão para os malandros. Dentro do trem algumas pessoas riam e caçoavam da situação em que se encontravam, dos corpos espremidos, do mal odor, dos ossos estalando e das posições quais as dos malabaristas. Uns reclamavam do governador, outros do prefeito, outros da empresa de transportes públicos, e os mais pessimistas reclamavam da pobreza. Aliás, todos eram muito pobres e para isso não era necessário muita inteligência ou sensibilidade. Além do mais morar naquela parte da cidade não era privilégio para ninguém, um lugar tão violento com pessoas tão mal educadas, diziam os Diários e Clarins. A pobreza, e nesse caso não a econômica, estampava-se no rosto de muitas pessoas no trem em que estava Moreno. Os homens e mulheres que seguiam rumo ao centro tinha as feições embrutecidas. Os rostos eram fechados com traços e rugas nervosos. Os sulcos se ramificavam nos pés dos olhos e as testas tinham rugas de expressão aos montes cultivadas pelo trabalho do tempo e pela exposição ao sol. Os olhos se escondiam nas fundas órbitas enegrecidas. Os lábios cerrados ou abertos, todos bufando o esforço do malabarismo férreo. As mãos que seguravam os corpos inertes às barras de ferro, essas eram cascudas e tinham no mínimo uns 4 centímetros de pele grossa revestida de barro e coisas mais. As unhas fortes fincadas nos dedos roliços pareciam as raízes de algum oitizeiro centenário. Moreno se identificava naquele meio e sentia tristeza de ver o seu povo sofrer tanto, de ver as suas mulheres trabalharem tanto, de ver seus homens morrerem tão cedo e de ver, ou melhor, não ver um futuro bom pras suas crianças. Tudo o que ele fazia era produzir. E não tinha que fazer sentido, só tinha que dar resultados. No trem lotado de gente triste e cabisbaixa, a vida era senão uma tragédia ou uma poesia muito triste.