quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Condução

Moreno, como usual, levantou-se cedo na manhã de segunda para seguir ao trabalho. Tomou do copo e engoliu o gole do café para amaciar o pedaço seco do pão que mastigava. Com a mesma facilidade com que envolveu o copo, tomou Magnólia nos braços, que ainda tinha o corpo mole do sono, e deu-lhe um beijo na boca, na beira da pia. Pegou as chaves e a carteira, abriu a porta, esboçou um sorriso de despedida e se foi. Caminhou lentamente o caminho entre a sua casa e a estação ferroviária, aproveitando para notar a paisagem por ter acordado alguns minutos mais cedo. Quanto mais próximo ficava da estação, mais aumentava o movimento de pessoas nas ruas, andando em procissão, em velocidades diferentes, todas na mesma direção. O cheiro de fubá e de milho das barraquinhas de vendedores que ganhavam a vida no comércio, misturados ao forte odor de piche que pulsavam das chaminés fabris tornavam o ar enjoativo. Moreno subiu as escadas da estação envolto por pessoas de todos os lados, o coro parecia um só corpo ganhando espaço, pé por pé, avançando escada acima. Antes que passasse pela roleta, o trem vinha chegando, e algumas pessoas se soltaram do grupo para se apressar para pegar o trem no horário. Moreno apenas deixou-se levar pela multidão que ditava os seus passos. O trem já vinha cheio e a estação cuspia gente para todos os lados. Mas quem trabalha tem horário e o povo é maestro em fazer caber gente onde já não é mais possível. A massa se comprimia no pequeno espaço do vagão e não respeitava gênero nem idade ou coisa do tipo. Na manhã de verão, antes das 7 horas, o ambiente já era fétido e os corpos suavam o mesmo suor que viria minutos mais tarde em horário de expediente. Moreno observava tudo atônito, como o sempre fazia. Apesar da rusticidade corporal, era muito sensível e sentia o palpitar de tudo o que estava a sua volta quando o queria. No espaço fechado notava os rostos dos trabalhadores transeuntes; no rosto negro de um mecânico ele identificou um talho, provavelmente fruto de alguma luta. Os homens das estações tinham fama de brigões, mas também de serem muito batalhadores. Bom, também haviam os pilantras, e desses o trem estava cheio, Moreno sabia identificá-los, mas eles sabiam respeitá-lo. Aliás, apesar da falta de ética ou de oportunidades, havia algo como um código moral dentro dos vagões daquelas linhas, ladrão não roubava trabalhador que molhava o rosto antes do sol amanhecer para chegar no serviço. De vez em quando aparecia algum estudante metido a intelectual ou alguma madame perdida pela cidade que servia de ganha pão para os malandros. Dentro do trem algumas pessoas riam e caçoavam da situação em que se encontravam, dos corpos espremidos, do mal odor, dos ossos estalando e das posições quais as dos malabaristas. Uns reclamavam do governador, outros do prefeito, outros da empresa de transportes públicos, e os mais pessimistas reclamavam da pobreza. Aliás, todos eram muito pobres e para isso não era necessário muita inteligência ou sensibilidade. Além do mais morar naquela parte da cidade não era privilégio para ninguém, um lugar tão violento com pessoas tão mal educadas, diziam os Diários e Clarins. A pobreza, e nesse caso não a econômica, estampava-se no rosto de muitas pessoas no trem em que estava Moreno. Os homens e mulheres que seguiam rumo ao centro tinha as feições embrutecidas. Os rostos eram fechados com traços e rugas nervosos. Os sulcos se ramificavam nos pés dos olhos e as testas tinham rugas de expressão aos montes cultivadas pelo trabalho do tempo e pela exposição ao sol. Os olhos se escondiam nas fundas órbitas enegrecidas. Os lábios cerrados ou abertos, todos bufando o esforço do malabarismo férreo. As mãos que seguravam os corpos inertes às barras de ferro, essas eram cascudas e tinham no mínimo uns 4 centímetros de pele grossa revestida de barro e coisas mais. As unhas fortes fincadas nos dedos roliços pareciam as raízes de algum oitizeiro centenário. Moreno se identificava naquele meio e sentia tristeza de ver o seu povo sofrer tanto, de ver as suas mulheres trabalharem tanto, de ver seus homens morrerem tão cedo e de ver, ou melhor, não ver um futuro bom pras suas crianças. Tudo o que ele fazia era produzir. E não tinha que fazer sentido, só tinha que dar resultados. No trem lotado de gente triste e cabisbaixa, a vida era senão uma tragédia ou uma poesia muito triste.

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